quinta-feira, 9 de julho de 2020

O som das moedas



Santo Ivo era bretão,
advogado e não ladrão,
Isto enchia todo o povo
de grande admiração.

Vivia ele na França
quando São Luís reinava
e em plena Universidade
Tomás de Aquino brilhava.

De advogado, Santo Ivo
logo juiz se tornou
e ainda bispo por cima
a Santa Igreja o ordenou.

Sucedeu que um belo dia
certo padeiro zangado
veio até ele arrastando
atrás de si um coitado.

- Este mendigo (dizia),
assando eu o meu pão,
ficou pertinho cheirando
com grande satisfação.

Quando fui cobrar-lhe o cheiro,
ele nada quis pagar;
por isso, ludibriado,
venho ao bispo me queixar!

- Dá-me então o que tiveres!
o bispo ao pobre ordenou,
e o coitado, nas mãos dele,
sua bolsa esvaziou.

Então Ivo sobre a mesa
as moedas foi lançando
uma a uma, e o som de todas
foi no espaço ressoando.

Mas quando, para apanhá-las,
o padeiro estende a mão,
segurou-lhe o bispo o braço
e declarou: - Isto não!

Se, sem comer o teu pão,
ele somente o cheirou,
o simples som das moedas
sua dívida pagou...

Dom Marcos Barbosa. Poema para as crianças e alguns adultos. Rio de Janeiro: 1944. p. 92-93.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Um coxo que vai longe.

(Poema dedicado à Santo Inácio de Loyola).

Bravo soldado em Pamplona,
em vão buscando a vitória,
Inácio tomba ferido,
para de Deus maior glória.

Enquanto espera soldar-se
a sua perna quebrada,
dão-lhe uma Vida de Cristo,
mais a Legenda Dourada.

E o gabinete homem da corte,
o militar de Pamplona,
ao conhecer Jesus Cristo,
por esse Rei se apaixona.

- Se os santos da Áurea Legenda,
mostraram tanto valor,
por que não posso eu, soldado,
servir ao Cristo Senhor?

Se sob duas bandeiras
o mundo está dividido,
daqui em diante, sem medo,
de Jesus tomo o partido.

Como Jacó coxeando
após com um anjo lutar,
Inácio vai decidido
o inimigo enfrentar.

E, aos pés da Virgem negra,
a presidir Monserrate,
depõe a espada terrena,
corre ao celeste combate.

Arregimenta soldados,
para a seu lado lutar
e o santo nome de Cristo
ao Novo Mundo levar.

E ao Brasil nos envia,
com sua negra roupeta,
quem nosso povo batiza
e tem o nome de Anchieta.

Rendamos glória à Trindade,
ao Pai, que o seu filho envia;
também ao Espírito Santo,
que desceu sobre Maria.

Dom Marcos Barbosa

A Rosa



(Poema dedicado à Santa Rosa de Lima).

Com ela sucede
coisa curiosa:
branca ou amarela,
continua rosa.

Rainha das flores,
o que mais a encanta
é virar mulher
e até mesmo santa.

Pois Rosa de Lima,
que em Lima nascera,
um nome diverso
dos pais recebera.

São Turíbio, bispo,
foi quem a batizou
e o nome de Isabela
nela colocou.

Mas o povo todo
(oh, como é formosa!)
passou a chamá-la
somente de Rosa.

Até Jesus Cristo,
numa aparição:
"És rosa (lhe disse)
do meu coração!"

Tomou-o por noivo,
não quis se casar;
no quintal da casa
passou a morar.

Rosas cultivava,
mas não as vendia;
com seu corpo e sangue,
Jesus a nutria.

Ia visitá-la
um frade médico
e barbeiro,
hoje São Martinho.

Por brancos e negros,
por índios rezava,
enquanto Jesus
com ela falava.

Deu-lhe a Igreja o dia
vinte e três de agosto.
- Padroeira da América,
não deixes teu posto!

Dom Marcos Barbosa. Poema para as crianças e alguns adultos. Rio de Janeiro: 1944. p. 100-101.




terça-feira, 16 de abril de 2019

AVE! MARIA!


Fagundes Varela (1841-1875)

A noite desce – lentas e tristes
Cobrem as sombras a serrania,
Calam-se as aves, choram os ventos,
Dizem os gênios: – Ave! Maria!

Na torre estreita de pobre templo
Ressoa o sino da freguesia,
Abrem-se as flores, Vesper desponta,
Cantam os anjos: – Ave! Maria!

No tosco alvergue de seus maiores,
Onde só reinam paz e alegria,
Entre os filhinhos o bom colono
Repete as vozes: – Ave! Maria!

E, longe, longe, na velha estrada,
Pára e saudades à pátria envia
Romeiro exausto que o céu contempla,
E fala aos ermos: – Ave! Maria!

Incerto nauta por feios mares,
Onde se estende névoa sombria,
Se encosta ao mastro, descobre a fronte,
Reza baixinho: – Ave! Maria!
Nas soledades, sem pão nem água,
Sem pouso e tenda, sem luz nem guia,
Triste mendigo, que as praças busca,
Curva-se e clama: – Ave! Maria!

Só nas alcovas, nas salas dúbias,
Nas longas mesas de longa orgia
Não diz o ímpio, não diz o avaro,
Não diz o ingrato: – Ave! Maria!

Ave! Maria! – No céu, na terra!
Luz da aliança! Doce harmonia!
Hora divina! Sublime estância!
Bendita sejas! – Ave! Maria!



domingo, 10 de março de 2019

O PADRE


Camilo Castelo Branco (1825-1890)*

Parte I

Na terra não há palavra que mais de pronto incenda o espírito em pensamentos do céu.
PADRE, este ministério augusto, que nunca se mancha das impurezas de quem mal o exerce, e parece refugiar-se no seio de Deus, d’onde viera, como vínculo sagrado, entre os atributos divinos e as fraquezas do homem.
A história do Padre é anterior a das nações. A sua presença na sociedade é eterna como o princípio que representa: é a religião personificada na majestade de sua missão.
Buscai-o no berço das gerações: encontrá-lo-eis, como Melquisedech em Solém, chefe da raça, como Noé nas montanhas da Armênia, ou sacrificador como Abel.
Quem é o Padre?
“Somos os auxiliares de Deus” – responde S. Paulo.
É magnifica esta hierarquia definida pelos lábios tímidos do apostolo! Será ela uma imagem oriental, uma hipérbole do orador, uma impostura do aventureiro? Deus, que fecundara o universo no seio do infinito por um ato incompreensível da sua vontade onipotente, precisaria do verme da terra em seu auxilio? O padre, como assevera S. Paulo, será o auxiliar de Deus?
É.
Quando o filho de Deus gotejou o sangue da Redenção, a face do mundo, orvalhada por aquele sangue, devia ser, em seus frutos novos, um monumento perpétuo da passagem de Cristo. Sobre as ruínas desse imenso empório a corrupção, dessa vasta cidade pagã, que abrangia os horizontes da terra, uma nova cidade era fundada. Com os alicerces na terra, e as cúpulas no céu, a Jerusalém celeste carecia de operários, cujos suores fossem bagas de sangue, e cujas recompensas houvessem de ser-lhes caucionadas pelo tesouro das mercês divinas.
Os padres foram estes operários, homens de trabalho, de lágrimas, de sangue, e de espírito ansioso por essas recompensas de glória não compreendida na terra. As pedras desse edifício celeste, desbastada pela palavra do sacerdote, e colocadas pela mão do ministro de Deus, eram os homens, somos nós, serão nossos netos, será a última das gerações.
“Nós somos os embaixadores de Cristo” – acrescenta S. Paulo.
E há dezoito séculos que o são. O mais profundo segredo do Senhor é o sacrifício do Calvário. Dos lábios do padre pode o gênero humano colher a revelação possível desse augusto mistério. Há sobre a terra um reino divino que pertence a Jesus Cristo, herdeiro de David.
Rei eterno, carecia de ministros iniciados no seu plano. Foram-no estes homens, que passavam entre nós, filhos de um século desvirtuado, e desvirtuador das missões que nos deslumbram o entendimento, anulando-nos a razão, orgulhosa mesmo da sua fraqueza quando se vê aniquilada.
Quereis avalia-los por um caráter que os separa dos auxiliares, dos embaixadores dos reis da terra? Olhai para vós, pequenos de hoje, que ainda ontem éreis grandes na república social. Olhai para vós, que perdestes o caráter de um alto dignitário apenas o arremesso da política vos depôs do patriciado, que considerastes vinculado à vossa astucia ou ao vosso merecimento.
Olhai agora para a fronte do Padre, lá vereis o sinal glorioso, que a mão do Eterno ali gravara há dezoito séculos! Recordai as iras tempestuosas, que têm conspirado contra aquele distintivo misterioso do embaixador de Deus; lembrai-vos do punhal revolucionário que intentou achar no coração do sacerdote o sentimento exclusivo do espirito; juntai à morte a perseguição, e a cólera dos agressores à paciente humildade dos agredidos; mas o caráter indelével da sua soberania não lh’o vereis um instante perigoso nas tormentas do desprezo que lhe votam e nas guerras traiçoeiras que lhe fazem.
Há mil oitocentos anos, que o facho da verdade eterna entre as mãos dos levitas ilumina o mistério daquelas palavras do mestre: “Vós sois a luz do mundo”. E que mão impiedosa pode apagar os vestígios de seus passos na mais inculta das nações, e na mais polida das cidades modernas? As hordas errantes d’África, os selvagens da Oceania escutaram-lhes as palavras de vida, que hoje ressoam nos templos de Paris vibradas pelos lábios inspirados de Ravignan, Ventura, e Lacordaire. Que maravilhosa consonância de vozes! Que caracteres tão profundos o Verbo insculpiu nos milhões de espíritos, que exercem num mesmo pensamento! Que mensagem tão rigorosamente cumprida é a destes embaixadores de Deus! Que prodigioso derramamento de raios não espalha o farol das nações, aquela privilegiada luz do mundo.
***
*A Cruz, Ano I, Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1920, n. 11, p. 3.


sábado, 9 de março de 2019

O OXIGÊNIO DA ALMA...


Por Pierre l'Ermite*

Vi um campo... Fora outrora meticulosamente trabalhado. A boa semente fora semeada, tratada, vigiada. Normalmente a colheita deveria ser soberba. Mas o cultivador possuía inimigos encarniçados. Esses inimigos tinham direito de entrar no campo, de espezinhá-lo e de nele lançar, dia e noite, a mancheias, as mais abomináveis sementes. Chamava-se a isso a liberdade de imprensa.
Vi uma família... O pai e a mãe existiam, sem existirem. Os chefes da família eram nomeados pelos filhos por maioria de votos. Cada qual tinha um voto, o mesmo... os pequenos como os grandes, os inteligentes como os imbecis... Os filhos olhavam ironicamente os que em tom austero lhes recomendavam o trabalho, a ordem, a economia.
Mas, naturalmente faziam festas aos que mais lhes prometiam férias, doces...e a lua.
Assim, quando votavam, os prudentes eram relegados pelos espertalhões, pelos preguiçosos e pelos tolos. E a isso chamava-se o sufrágio universal.
O abismo chama outro abismo.
Até agora somente os homens votavam.
Amanhã as mulheres, deixadas até então na calma do lar, iriam, também elas, votar.
A fatalidade das premissas, postas outrora pela revolução, devia dar nisso.
Depois dos direitos do homem, os direitos da mulher. Era rigorosamente lógico.
Sem contar que - nem sempre, mas algumas vezes, a mulher é bem melhor que o homem.
Então minada já pelo divórcio, atacada pela recrudescência de egoísmo do tempo moderno, vai a família ser dividida por um fator a mais.
E que fator! A política.
Em certos casos, toda a família votará no mesmo candidato.
Muitas vezes, porém, o pai terá o seu favorito, o filho, um outro; a mãe, o seu; a filha também o seu...
Imaginai o jantar da família depois das eleições. Felizes os que possuírem louça de alumínio!
Devemos desencorajar-nos? Não... Nunca nos devemos desencorajar. Desencorajar-nos, quando somos arautos de uma boa causa, é duvidarmos de Deus, que quando quiser, reduzirá a nada todos os maçons do mundo.
Dum spiro spero. A esperança, é o oxigênio da alma. E, depois, folheando a história de meu pais, confesso preferir viver em minha época a ter vivido no dia seguinte ao de Azincourt, ao de Poitier, ao de Créoy e a muitas outras datas.
E principalmente, razão mais forte: não posso escolher.
Deus fez-me nascer na época presente.
Não me exigirá contas senão do meu tempo.  Mas desse, exigir-me-á, de certo, contas.
Vamos, pois, a ele. Vamos desde logo com os meios de sempre. Com a oração, o preparo profundo do catecismo, a vida paroquial intensa, as escolas, o recrutamento sério das vocações. Essa é a base de todo trabalho para a conquista das almas.
Deprimir essa base por necessidade de modernismo, é edificar sem alicerces e pretender que uma árvore possa viver sem raízes. Completai, entretanto, o efeito dessas armas de sempre pelos meios atuais. Nossos inimigos tanto nos dão o exemplo!
Com efeito, o exército é sempre o exército, com a infantaria, a cavalaria, a engenharia, a artilharia. Seria, porém, o exército moderno sem aviões, hidroplanos, dirigíveis, gazes, etc?
A paróquia é sempre a paróquia. Seria, porém a paróquia moderna, se se imitasse a esperar tranquilamente os fiéis aos pés das cadeiras da pequena Igreja? Seria uma paróquia moderna se não tivesse a sua “União” para homens, sua “Liga” para senhoras, sua obra de imprensa, sua biblioteca, um salão paroquial, um cinema, colônias de férias...
Toda paróquia, por menos importante, deve tender para a totalidade desses armamentos.
E se todos esses meios forem postos em obras com fé, método, perseverança, então, e então somente, nos tornaremos interessantes aos olhos desse Deus, de que os tímidos tanto desgostam, a ponto de preferir a ele, os próprios maus...
À obra, pois! Não espereis para empreender, não há necessidade de ser bem-sucedido para perseverar. Deus não nos pede senão o esforço. Ele pesa o menor dos nossos gestos de apostolado.
A vitória, isso é só com ele.
Se tendes fé, a grande fé dos grandes apóstolos, então arrancar-lhe-eis o milagre necessário...
Essa fé, tende-a, dura, obstinada mesmo, se o milagre custar..., mesmo que não seja concedido.
É diante da recusa de Deus que é belo exclamar. Creio em Ti, de qualquer modo! Em tua bondade, em tua proteção por uma pátria que não podes deixar de amar, porque é como o coração do mundo.
***
*Revista A Cruz, n. 34, Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1925.



PUREZA INTERIOR


A pureza de alma das crianças deve ser cuidada pela mãe com especialíssima dedicação, porque a pureza e a delicadeza interior são pressupostos do verdadeiro carácter. A pureza da alma infantil é como o cristal e basta um só hálito para a embaciar. A mãe nunca pensa que o filho é ainda muito novo e que ainda não compreende. Por isso põe especial atenção nos jogos das crianças, e procura evitar os excitantes da sensibilidade do filho e tudo quanto possa fazê-lo mole e sonhador. Certas bebidas ou comidas, a solidão, o excessivo comodismo nas posições, etc., são prejudiciais. Na mesma ordem de ideias, é preciso pôr em relevo, com insistência, esse fato do problema habitacional, que obriga a deitar as crianças na mesma cama. Deve ser evitado sempre que for possível.
Os pedagogos constataram o facto de que sessenta por cento das crianças atravessaram, dos três para os seis anos de idade, uma grave crise moral. Pode acontecer que nesses anos da infância estejam a faltar, à sua maneira, contra o sexto mandamento sem que os pais tenham a menor suspeita. O abraçar e beijar demasiado as crianças nem sempre é conveniente e um bocado de aspereza não faz mal nenhum. Oxalá todas as mães tenham o dom de educar os seus filhos na mais rigorosa moralidade e na mais delicada pureza!

Cardeal MINDSZENTY. A Mãe, 2ª ed., Lisboa: Aster, pp.208-209.


terça-feira, 5 de março de 2019

O ESPÍRITO DA QUARESMA


Gustavo Corção

A Igreja nos desdobra o maravilhoso panorama das várias lições que vitalmente interessam, ou deviam interessar aos seus filhos, e assim reaviva nas várias estações do ano litúrgico certas noções que deveriam ser companheiras de todos os passos de nossa vida. Assim é a Quaresma. Segundo ensina nosso pai São Bento, a vida inteira do monge deveria ser uma quaresma ininterrupta. Como isto é impossível para os fracos, e como a Regra Monástica, à semelhança da Igreja, é moderada para que os fortes possam dar mais, e para que os débeis não desanimem, representamos nesta quadra do ano o mistério da preparação da Paixão redentora do Cristo, e concitamos nossos irmãos e amigos a aproveitarem esta sabatina que reaviva o espírito de quaresma.

Qual é a lição essencial da quaresma, no que nos diz respeito? A Igreja responde com a liturgia das cinzas, e nós podemos desenvolver a idéia: o que nos cumpre aprender nestes dias, mais do que nos outros, é a doce e santa lição de nossa total dependência nas mãos de Deus. Ou como diria Santa Catarina de Sena, na sua linguagem de sangue e fogo: devemos aprender a lição de nosso nada.

Todo o mundo moderno é desatento, brutalmente desatento ao espírito da quaresma. Um humanismo insolente, grosseiro, agora reforçado com as estridências que se ouvem pela porta dos fundos da Igreja, tenta inculcar no homem uma confiança em si que o deixe esquecido de sua condição peregrinal e de sua destinação última. Vivemos dentro de uma espessa idolatria: todos querem exaltar os valores humanos em detrimento ou com esquecimento de sua total dependência de Deus. O nome de Deus é silenciado, é empurrado para a obscuridade, para que a glória do homem refulja.

Entende-se bem que o homem realize neste mundo, do melhor modo possível, sua instalação, ou melhor, sua afirmação de domínio sobre o mundo inferior. É bela a conquista da Ciência que exalta a razão e a específica superioridade do homem sobre todo o Universo visível. É confortador o progresso técnico que nos assegura um decente conforto neste trem expresso onde às vezes esquecemos a brevidade do tempo. É bela a civilização que realmente enaltece os valores humanos em contraste com a mundo inferior; mas tudo isto só se mantém em ordem razoável se ao mesmo tempo nos lembrarmos de exaltar a glória de Deus e nossa completa e total dependência. O inferior deve submeter-se ao superior: é razoável que o homem submeta os átomos, mas é loucura submeter os átomos e esquecer que devemos nós mesmos nos submeter a Deus.

A própria psicologia moderna, impregnada de empirismo, tem horror a certas categorias espirituais que fogem aos seus quadros. Assim é que combate com todo o seu vigor todos os sentimentos de insegurança. Ora, isto é uma monstruosidade a mais que se pratica neste vale de lágrimas. É claro que devemos ser corajosos, que devemos ser audazes, que não devemos ser pusilânimes, mas daí não se deduz que devamos nos sentir seguramente instalados na vida. Este sentimento é perfeitamente estúpido e grosseiramente anti-espiritual. A alma cristã, com todas aquelas qualidades de bravura e de audácia, sabe que sua vida pende de um fio que está nas mãos de Deus; e desta ciência não tira amargura nenhuma, ao contrário, tira a humildade, a ação de graças, e o infinito amor pelo Ser absoluto a que a todos nos sustenta. E em termos mais próximos da paixão de Cristo, o sentimento de fragilidade e contingência se traduz em vínculo de caridade que nos prende à videira santa, à Cruz em que pomos toda a exaltação e toda a glória.

O grande judeu Egon Friedel, em sua História da Cultura, teve a finura de sentir o valor sobre-humano do sentimento de fragilidade e de insegurança do medieval. O meio social ajudava, a ciência médica estava numa fase infantil e até caricata que levava o grande São Bernardo, que obedecia pontualmente às extravagantes prescrições de um esculápio, dizer com mansa tristeza: "Eu, que no Mosteiro tenho o encargo de dirigir e dar ordens a santos, tenho de obedecer a um asno". Toda essa pobreza de meios tinha impedido o surto do humanismo senhor de si mesmo, e o arguto judeu se admirava da espiritualidade que iluminava todo aquele povo medieval. Eles sabiam que a vida era uma grande aventura, e que a dependência de Deus se fazia sentir em todos os atos de coragem e de abandono, ou de resignação e tristeza.

Progredimos muito em veículos, em máquinas, em produção, mas no momento parece que regredimos em relação ao espírito de quaresma. Sirva-nos isto de incitamento e de lição, e procuremos nós viver mais a fundo essa presença de Deus que produz a humildade agradecida e amorosa.




domingo, 13 de janeiro de 2019

RETRATO, NA VOZ DE JOÃO VILLARET


Ele era da raça dos que suportam
Todo o peso da vida,
Era da dos que não se queixam
Dos que sorriem diante do destino adverso.

Viveu em silêncio grandes horas amargas
E ninguém conheceu as devastações,
O efeito dos golpes que lhe foram vibrados.

As sua ruínas, os seus deuses mutilados,
Os túmulos que estavam nele
Ninguém desvendou,
Tudo ficou escondido,
Tudo ficou defendido
Pela sua máscara tranquila.

No entanto ninguém amou
Mais profundamente do que ele amou,
E ninguém terá recolhido maior melancolia
E maior incompreensão
Do amor.
Ninguém desejou mais a companhia dos seus semelhantes,
Ninguém teve mais necessidade do calor amigo,
Do apoio, do aplauso, da solidariedade humana.
No entanto - sua vida se consumiu na solidão, no desamparo e na indiferença.

A amargura não fermentou sua alma,
O ressentimento não dominou jamais sua visão simples das coisas,
Ele era da raça dos heróis obscuros.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

DEUS PRECISA DOS SANTOS, E ESPECIALMENTE DE MARIA


"Podemos dizer que Deus precisa dos santos, e especialmente de Maria, porque nessas criaturas temos uma espécie de misericórdia que não podemos ter no próprio Deus: uma misericórdia que, além de vir do amor, vem da própria miséria. Por puríssima que seja, Maria é criatura, e como tal é miserável. E é por isto – ouso dizer – que Deus precisa de Maria e dos santos para o exercício de sua misericórdia e para o contato salvador com nossa miséria.
Todos nós sabemos que Deus e o pecado são incompatíveis; mas também sabemos que as mais belas tradições de nossa história revelam um como que privilégio dos pecadores, ou uma inconcebível espécie de atração de Deus por nossa miséria. Quase diríamos que a marca do cristianismo é a de uma atrevida predileção pelo pecador. Como pode ser isto? Os evangelhos contam o amor de Jesus por Madalena, e nos apresentam a parábola do publicano. Jesus veio salvar “o que estava perdido”. Sua Igreja é uma casa-de-saúde. Seus prediletos são os pecadores, ou ao menos os que se reconhecem como tais. Na cruz, o primeiro santo canonizado é o bom ladrão. E daí por diante abundam as histórias em que os grandes pecadores interessam instantaneamente às almas de eleição. Santa Catarina correu a visitar o jovem Tuldo em seu cárcere, e recebeu sua cabeça decepada e seu sangue, gritando: “Io voglio!” Santa Teresinha do Menino Jesus teve seu primeiro protegido num assassino que mereceu pena de morte: por intercessão de suas fervorosas orações o pobre monstro humano, a dois passos do cadafalso, voltou-se bruscamente e beijou com lágrimas a cruz que um padre lhe oferecia.
Em todas essas histórias tem especial relevo a intercessão de Maria, refúgio dos pecadores".

Gustavo Corção. A Igreja do céu, Revista Permanência.


quarta-feira, 7 de novembro de 2018

A FAMÍLIA COMO LAÇO DE AFETO


“A família é o laço de afeto que dá à sociedade em que vivemos o caráter de pátria, e quando essa ideia se agita em nossa mente e em nosso coração, é que nele se agitam, dando consistência e substantividade ao conceito, as noções e as lembranças do lar, e as reminiscências da infância envoltos nas carinhosas repreensões do pai e os jogos alegres dos irmãos e as lagrimas e abraços da mãe”.
*****
Pe. LUIS CHALBAULD (S.J). La familia como forma típica y transcendental de la constitución social vasca, p. 45.